29.11.2016
Um conto de Natal
De sacola e
bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A
necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em
Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode
ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que
remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente
desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a
meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá
se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções são que nos
salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia
mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo
conseguia viver.
Um conto de Natal

E ali vinha de
mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira.
Muito embora trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe
custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em
Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê!
Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem
casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo,
permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso
sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um
borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da
última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados.
Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele
santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da
serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo
que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais.
Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e
esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como
anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr
contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na
taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar
para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia
coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está
acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se!
Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse,
recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada!
Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o
algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos
Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O
que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o
passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas.
Rico panorama!
Com patorras de
elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao
adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto.
Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Entrou no
alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então
reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou
alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal,
o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a
resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá
fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou
um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e
húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três
vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de
angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de
ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu,
realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também
agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível
na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas
festas! — Desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe
saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado
a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá
morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da
romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco,
envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer
lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de
cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que
mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas
dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e
uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um
rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da
capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa
toda. É servida?
A Santa pareceu
sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas,
diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas:
entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos
aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz
de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
Miguel Torga
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