UM
POUCO DE SILÊNCIO
Sob
a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de
qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações. Muitas desnecessárias,
outras impossíveis, algumas que não combinam connosco nem nos interessam.
Não
há perdão nem amnistia para os que ficam de fora da ciranda: os que não se
submetem mas questionam, os que pagam o preço da sua relativa autonomia, os que
não se deixam escravizar, pelo menos sem alguma resistência.
O
normal é ser actualizado, produtivo e bem informado. É indispensável circular,
ser bem-relacionado. Quem não corre com a manada, praticamente nem existe, se
não tomar cuidado, põem-no numa jaula: um animal estranho.
Pressionados
pelo relógio, pelos compromissos, pela opinião alheia, disparamos sem rumo – ou
por trilhos determinadas – como hamsters que se alimentam da sua própria
agitação.
Ficar
sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se em casa ou dentro de si
mesmo ameaça quem apanha um susto de cada vez que examina a sua alma.
Estar
sozinho é considerado humilhante, sinal de que não «se arranjou» ninguém – como
se a amizade ou o amor se «arranjasse» numa loja.
Além
do desgosto pela solidão, temos horror à quietude. Pensamos logo em depressão:
quem sabe terapia e antidepressivos? Uma criança que não brinca ou salta ou
participa de actividades frenéticas está com algum problema.
O
silêncio assusta-nos por retumbar no vazio dentro de nós. Quando nada se move
nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incómodas e
mal--resolvidas, ou se observa outro ângulo de nós mesmos. Damo-nos conta de
que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre a casa, o trabalho e
o bar, a praia ou o campo.
Existe
em nós, geralmente nem percebido e nada valorizado, algo para além desse que
paga contas, faz amor, ganha dinheiro, e come, envelhece, e um dia (mas isso é
só para os outros!) vai morrer. Quem é esse que afinal sou eu? Quais os seus
desejos e medos, os seus projectos e sonhos?
No
susto que essa ideia provoca, queremos ruído, ruídos. Chegamos a casa e ligamos
a televisão antes de largarmos a carteira ou a pasta. Não é para assistirmos a
um programa: é pela distracção.
O
silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe Deus que
desconcerto nosso. Com medo de vermos quem – ou o que – somos, adiamos o
confronto com a nossa alma sem máscaras.
Mas,
se aprendermos a gostar um pouco de sossego, descobrimos – em nós e no outro –
regiões nem imaginadas, questões fascinantes e não necessariamente negativas.
Nunca
esqueci a experiência de quando alguém me pôs a mão no ombro de criança e
disse:
—
Fica quietinha um momento só, escuta a chuva a chegar.
E
ela chegou: intensa e lenta, tornando tudo singularmente novo. A quietude pode
ser como essa chuva: nela nos refazemos para voltarmos mais inteiros ao
convívio, às tantas frases, às tarefas, aos amores.
Então,
por favor, dêem-me isso: um pouco de silêncio bom, para que eu escute o vento
nas folhas, a chuva nas lajes, e tudo o que fala muito para além das palavras
de todos os textos e da música de todos os sentimentos.
Lya Luft
Pensar
é trangredir
Lisboa, Presença, 2005
Comentários
Enviar um comentário
Dê a sua opinião.