3.4.2017
História do mês de Abril
Farta de receber ordens
Era uma vez uma menina que estava farta de estar em
casa. Farta, farta, farta que a mandassem para a escola; farta, farta, farta
que se zangassem com ela para comer; farta, farta, farta que a obrigassem a
vestir o que não queria e farta, farta, farta de não mandar nada em ninguém e
toda a gente mandar nela!
Além disso, a menina estava amuada desde
que tinha nascido, por lhe terem chamado Cátia Vanessa, quando preferia mil
vezes que a tivessem baptizado como Penélope. Um dia queixou-se à mãe: — Mãe
estou farta, farta, farta! Quero outra vida, quero mandar muito!
E a mãe desatou-se a rir (os adultos às
vezes riem nas alturas mais estúpidas) e respondeu: — Então faz-te à vida,
filha: arranja casa e emprego, e depois mandas em quem quiser obedecer-te.
A Cátia Vanessa, ou Penélope como
gostava de se imaginar, foi ter com o pai e repetiu-lhe a pergunta: — Pai, pai,
estou farta, farta, farta desta casa...
O pai, que estava a aparafusar uma
estante, olhou para ela lá de cima, e disse-lhe: — Ó minha amiga, põe a trouxa
às costas e faz-te à vida!
Estava tudo doido naquela casa, pensou a
Cátia Penélope Vanessa. E, ainda por cima, o pai e a mãe tinham aquela
irritante mania de dizerem sempre a mesma coisa, mesmo quando não estavam
juntos. Se fossem os pais dos seus amigos tinham-se atirado aos pés dos filhos
a pedir-lhes para não se irem embora, a prometerem presentes se ficassem... Mas
os pais da Cátia Vanessa, tinham dito, mais coisa menos coisa: — Se não estás
bem, muda-te!
Era demais! Agora ia mesmo fugir de
casa, e depois é que os pais haviam de ver! Pegou numa mala e atirou as suas
coisas mais preciosas lá para dentro: uma camisa de noite, a t-shirt com o
golfinho de que mais gostava, uma bolsinha com moedas de ouro que a avó, mãe da
mãe, lhe tinha dado em pequenina, e duas escovas de prata, herdadas da avó mãe
do pai, que já tinha morrido. Depois, bateu a porta com o maior estrondo que
pôde e começou a descer a rua, com um passo rápido. De vez em quando olhava por
cima do ombro: de certeza que, com aquela barulheira, os pais tinham percebido
que fugira e vinham atrás dela...
Mas, estranhamente, nada. E a Cátia
Penélope Vanessa teve de virar a esquina, sabendo que nenhuma pessoa grande
estava com ela... Quando se viu naquela rua onde nunca tinha estado sozinha,
sentiu-se um bocadinho assustada. Assustada porque se tinha esquecido de pensar
para onde ia. Não podia ir para casa de avós, nem de tios, nem de amigas,
porque, se não, ligavam logo aos pais a dizer onde ela estava, e assim eles não
se assustavam. Sentou-se num degrau e pensou e pensou... Uma velhinha de lenço
preto na cabeça, que ia a passar, parou para lhe falar: — Perdeste-te, menina?
— perguntou a senhora.
A Cátia deu um salto e agarrou-se com
mais força à sua mala. Mas, como fora de casa era bem-educada (a maioria das
pessoas são mais educadas fora de casa, vá-se lá saber porquê!), respondeu: —
Eu fugi de casa, mas não tenho para onde ir. E a velhinha, tentando esconder o
sorriso, perguntou, curiosa: — Porque é que fugiste?
Aí a menina ficou um bocado
envergonhada: — Porque queria mandar muito! E porque estava farta de receber
ordens de toda a gente... — murmurou baixinho. — E então os meus pais disseram
para ir procurar alguém que obedecesse às minhas ordens, porque na casa deles,
mandavam eles. É injusto!
A velhinha ficou muito séria. Pensou,
pensou e depois respondeu: — Já sei! Tenho exactamente aquilo de que precisas.
Espera aqui um bocadinho que já volto.
E a menina Cátia esperou, porque também
não tinha para onde ir. E, minutos depois, a velhinha voltou com um cachorrinho
pequenino, de um castanho muito clarinho, orelhas compridas e um focinho com
bigodes. E disse: — É para ti. Assim não vais sentir-te tão sozinha, e podes
mandar nele. Mas manda bem, porque os cães sabem muito bem o que é justo e o
que não é. E se não for, é natural e bem feito que te dê uma dentada. Mas se
for bem mandado, dá-te lambidelas e salta para brincar contigo.
A Cátia Penélope Vanessa ficou muito,
muito contente. Disse obrigada várias vezes e voltou a subir a rua inclinada
até à porta de casa. E agora, como é que ia voltar sem que fizessem troça dela?
E se estivessem zangados? Mas, mesmo antes de ter tido tempo de abrir a porta,
a porta abriu-se e a mãe agarrou-a ao colo, e apertou-a com muita força: —
Minha pateta, ainda bem que voltaste! Não conseguíamos viver sem ti!
E o pai desceu do escadote, atirou-a ao
ar e disse: — Não voltes a fugir, está bem?
E a Cátia mostrou-lhes o cão pequenino,
e a mãe e o pai disseram que sim, que podia ficar com ele, desde que lhe desse
de comer, o levasse ao veterinário e a passear à rua, o educasse a não fazer
chichi dentro de casa e a não morder, e a obedecer às ordens dos donos. A Cátia
olhou espantada: — Mas isso é o que vocês fazem comigo!
Desataram todos a rir e a Cátia Penélope
Vanessa decidiu que pelo menos um erro não ia repetir: não ia baptizar o cão
com um nome de que ele não gostasse. Por isso perguntou-lhe como é que ele
queria chamar-se. Como ele respondeu «Ão-ão», foi como «Ão-ão» que foi
baptizado.
Isabel Stilwell
Histórias para contar em 1 minuto e ½
Lisboa, Verso da Kapa, 2005
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